quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Por mais 90 minutos

Tudo que o homem médio quer da vida numa quarta-feira após um dia extenuante de trabalho é sentar em frente a televisão e assistir o futebol tranquilamente como se sua alma precisasse daqueles 90 minutos boleiros de alento para resistir bravamente até o fim de semana. Era tudo que eu queria ontem. Fui tolhido de exercer minha masculinidade por razões de força feminina, que me obrigava a buscá-la no aeroporto.

O maldito vôo chegava 21h. Nacional Querido e San Lorenzo começariam a batalha campal pela glória maior da Libertadores. Graças a um milagre dos céus, da Embraer, sei lá, consegui deixar Guarulhos pouco antes das 21:30. Com sorte, eu chegaria para o segundo tempo.

Adoro rádio. Adoro mesmo. Mas são todos uns desgraçados desinteressados no maior duelo da América. Todas as frequências apontavam para o mesmo modorrento Palmeiras x Avaí e a cada 5 horas lembravam-se de informar, em tom manifestamente inapropriado para a grandiosidade da partida, que o embate no Defensores del Chaco seguia 0-0.

Enquanto minha namorada discorria sobre a viagem, a audiência, o escritório, o céu, a terra, o luar, interrompeu seu monólogo para me fazer uma sugestão indecente: evitar a saída que claramente indicava SÃO PAULO-MARGINAL TIETÊ pois, segundo seu questionável conhecimento da geografia local e duvidoso senso de direção, havia uma outra saída adiante.

Óbvio que ela estava errada. Quando me vi diante de um comunicado formal da rodovia alertando que era o último retorno antes do pedágio percebi o equívoco que me tolhia sagrados minutos de futebol. Enquanto ajustava as coordenadas da nave para o caminho de casa, fiz um pacto com Cronos para que congelasse o tempo ou desse simbólicos 20 minutos de acréscimo para que, com o intervalo, eu pudesse me dar ao luxo de ver 45 minutos dessa final incrível.

Cansado, irritado, faminto, adentro o apartamento e corro para a televisão. 10 minutos do segundo tempo, 0-0. Corro na cozinha, deito uma meia dúzia de costelinhas no prato, espremo o limão de qualquer jeito por cima delas e volto para o quarto. Comida, futebol, puta merda, esqueci algo pra beber.

Jogo rolando e eu lá, confortável, mastiga aqui, vê a pelota correr pra lá e pra cá sem muito perigo para nenhuma das duas equipes. San Lorenzo del Papa melhor. Trabalha melhor a redonda, troca bons passes e circunda o campo de ataque com mais ousadia que os mandantes. O Nacional Querido seguia sua cartilha de defender-se muito e atacar somente quando insistentemente convidado.

Comer costelinha jamais será um ato limpo. A Libertadores também não é um torneio que se vence com um certificado da vigilância sanitária. E durante uma briga que eu travava com um pedaço de carne que insistia em não sair do osso eu olhava para outro ataque despretensioso dos cuervos. Os passes chegam à lateral e tome bola na área. Matos antecipa e de bate-pronto tira de Nacho Don.

Foi possível ouvir um grito ensandecido seguido de uma bateria de fogos na praça São Pedro. Tal fato é verídico porque ganhou eco nos Defensores del Chaco posto que somente se ouviam as gargantas argentinas no Paraguai. Larguei o osso resignado. Embora feliz pelo Papa, praguejei contra ele. Sabia que o San Lorenzo era melhor mas, caramba, era o Nacional Querido! Como não amar?

Terminei de comer e mantive os olhos nas tentativas desorganizadas do Nacional em tentar reverter o quadro de terror que se pintava. Os minutos passavam tão rápido quanto no carro uma hora atrás. Poucas ameaças paraguaias, contra-ataques eternos dos cuervos. Já iniciava colocar essa desgraça toda na conta dessa maldita viagem de trabalho que me fez perder não só 55-60 minutos de jogo, mas toda uma final sui generis.

45 minutos. Levo o prato na cozinha, balanço a cabeça negativamente e volto pro quarto. Entro no banheiro, encosto a porta e passo a divagar. Sou mestre em concentrar meus pensamentos em assuntos absolutamente aleatórios durante incontáveis horas. Começo a escovar os dentes já dando como certo o título cuervo. 

E estou lá pensando em algo tão importante como que gravata eu vou usar amanhã porque preciso acordar cedo para evitar o trânsito e que o San Lorenzo tanto merecia o título a ponto de ter o Papa como hincha e, puts, imagina só Ciclón e Real Madrid no Mundial, tal e coisa e eis que ouço ao fundo uma música. Uns tambores, um som estridente de algum ritual pagão sul-americano de uma tribo ainda a ser descoberta mas já familiar aos meus ouvidos. Corro para a tevê e vejo Júlio Santa Cruz - irmão de Roque - abraçado pelos seus companheiros.

Era um gol! Gol do Nacional Querido! Uma bola desesperada lançada na área acaba por se oferecer para Júlio completar para as redes e empatar o placar aos 48 minutos! O replay mostrava o tento da esperança em vários frames e, comemorei. Ergui a escova como um bastão, punhos cerrados e bradei um audível "IÉÉÉ!" alto o suficiente para que de 80 a 100% da espuma da minha boca fosse despejada entre minha camiseta e o chão do quarto.

O gol dá ao Nacional a esperança de jogar como gosta. Vai se defender ao extremo e atacar pontualmente desde que o San Lorenzo ofereça um latifúndio para tanto. Aos de Papa nem tudo está perdido. Os cuervos jogarão em casa, possuem um time mais técnico, mais equilibrado, com mais predicados e alternativas. São virtuais favoritos. Porém, estamos falando de Libertadores, d'A Libertadores. Previsões são meras especulações de uma gama infinita de possibilidades. Deito satisfeito. Haverá mais 90 minutos.


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